Ao invés de temer a perda de poder político, cristãos deveriam considerar a escolha de Daniel

Texto escrito por Dr. Michael Rhodes, publicado no The Biblical Mind em 4 de novembro de 2020, e traduzido por Allie Terassi e revisado por Igor Sabino.

Evangélicos amam a história do Bom Samaritano. Mas nós também tendemos a não misturar política e religião, para que não imitemos o auto-sacrifício do samaritano ao votar.

Em uma pesquisa recente do Life Way Poll, 61% dos que se identificam como evangélicos disseram que esperavam que o seu voto presidencial beneficiasse mais “pessoas por todo o país que são como eu” ou “eu e minha família”. Não-evangélicos eram 9% mais prováveis a identificar que as “pessoas com quem nosso país falhou” eram as que eles mais esperavam beneficiar.

Podemos argumentar que, defendendo de forma honesta nossa visão específica do que é bom, estamos na verdade buscando o bem comum a todos. Mas o interesse político evangélico eventualmente nos leva a defender para nós mesmos privilégios que relutamos em estender a outros. Estamos mais propensos a exigir liberdade religiosa, mas também a apoiar o presidente Donald Trump em sua proibição temporária a viajantes oriundos de países de maioria muçulmana e, também, a redução dramática no reassentamento de refugiados cristãos que fogem de perseguição. Mesmo reconhecendo as diferenças entre políticas de imigração ou refúgio e a liberdade religiosa, talvez ainda possamos entender por que os evangélicos são frequentemente acusados ​​de defender uma “liberdade religiosa”, que significa, na verdade, “liberdade religiosa para pessoas como nós”.

As disputas políticas resultantes na igreja mostram um fracasso no discipulado político. A resolução de tais disputas começa ao ouvir atentamente as Escrituras.

Para muitos evangélicos, no entanto, o posicionamento político das Escrituras começa e termina em Romanos 13:1: “Que todos estejam sujeitos às autoridades superiores. Porque não há autoridade que não proceda de Deus, e as autoridades que existem foram por ele instituídas.” Nessa perspectiva, ser um discípulo político significa se submeter aos poderes constituídos.

Outros evangélicos se voltam para a descrição de Roma no Apocalipse como se o Estado fosse um monstro que deve ser derrubado. Para esses, discipulado político consiste em identificar a idolatria dos poderosos e resistir a eles.

O problema de basear nossa abordagem inteira de política e religião em qualquer um desses textos não são as passagens em si. Ambas são essenciais para um relato totalmente bíblico do discipulado político, e não menos para entender como a vida do povo de Deus é intrinsecamente política de tal forma que excede em muito uma definição restrita de política por partidos e eleições.

O problema é que os textos foram escritos para cristãos que tiveram pouca ou nenhuma influência direta no processo político de sua comunidade, enquanto os evangélicos exercem um poder significativo na nossa. Se quisermos saber como buscar o bem-estar da comunidade por meio de votações, manifestações ou protestos, também seremos bem servidos ao nos engajamos com histórias bíblicas sobre o povo de Deus participando da política de nações estrangeiras.

A “Opção de José”

Se estamos procurando por santos que ganharam influência política direta nas sociedades de seus dias, nossa primeira referência é a história de José. A primeira vista, ele parece oferecer o modelo perfeito para fielmente misturarmos política com religião. Ele demonstra caráter moral (39:10) e vê Deus trabalhando por meio de sua influência política para salvar muitas vidas (50:20).

Mas antes de entrarmos na “Opção José” para o engajamento político cristão, precisamos dar uma olhada mais cuidadosa no seu programa de alívio da fome. Fazer isso pode nos ajudar a descobrir como podemos imitar os sucessos de José, enquanto evitamos seus erros.

Primeiro, José reúne “toda a comida” dos anos que foram bons (41:48). Quando a fome chega, ele vende os grãos de volta aos egípcios até juntar “todo” o dinheiro deles. Quando eles ficam sem dinheiro, José permite que negociem seus rebanhos e gado por grãos. E, por fim, José compra “toda a terra do Egito” e até mesmo os próprios egípcios para o Faraó (Gn 47: 13–26).

Alguns estudiosos sugerem que não devemos impor nosso desconforto moderno sobre nada no texto.1Veja Wenham, Genesis 16–50, 400, 452, e especialmente Speiser, Genesis, 353. Mas a própria Escritura levanta preocupações. Para começar, o Pentateuco procurou previnir a escravidão por dívida permanente e a concentração de terras que José realiza para o Faraó. Jacob Milgrom ainda argumenta que a queda na pobreza descrita em Levítico 25:25-55 condena implicitamente a maneira como José ajuda o Faraó a capitalizar o sofrimento dos egípcios permanentemente.2Jacob Milgrom, Leviticus 24–27, 2192, 2228.

Embora José possa argumentar que “tempos de desespero exigem medidas desesperadas”, o narrador sutilmente nos mostra que ele tinha alternativas. O prelúdio imediato para a história das medidas de austeridade de José é o registro de sua abordagem bastante diferente para seu próprio povo. José sustenta os “pequeninos” de sua família, dando-lhes terras (47: 11-12). Ele sustenta os “pequeninos” egípcios ao tomar terras de seus pais (47:24). José adquire todo o gado dos egípcios para o Faraó somente depois de garantir que alguns de seus irmãos tenham empregos supervisionando os rebanhos reais. Os únicos egípcios que obtêm uma exceção à apropriação de terras do Faraó são os sacerdotes, incluindo, presumivelmente, a família sacerdotal com a qual o próprio José se casou.3Veja Janzen, Genesis 12–50, 179–8.

A opção José está começando a soar estranhamente familiar. Ele mantém com aqueles cujo principal objetivo político é melhorar sua própria situação. Os evangélicos podem até citar Romanos 13, mas tomamos José como nosso santo padroeiro.

Os estudiosos das Escrituras sabem que isso não acaba bem. O sucesso de José em ajudar o Faraó a ganhar poder volta para assombrar seus descendentes. O Faraó que “não conhecia José” se torna a ferramenta da política econômica exploradora contra o povo de Deus.

Isso explica a curiosa referência à terra boa que José conseguiu para sua família sendo a “terra de Ramsés” (Gn 47:11). Em outro lugar, o texto chama essa terra de Gósen, já que Ramsés se refere a uma cidade que ainda não havia sido construída na época de José. Mas aqui Gênesis usa esse anacronismo intencionalmente para lembrar aos leitores que um dia a situação política mudará.4See Matthews, Genesis 11:27–50:26, 848. Em vez de ganhar boas terras por meio da manipulação habilidosa dos excedentes de alimentos, os descendentes escravizados de José serão forçados a construir cidades de armazenamento maiores e melhores, incluindo a cidade de Ramsés (Êxodo 1:11).

A mensagem é clara: viva pela espada política, morra pela espada política. Construa o reino da sua tribo na terra de Gósen através de políticas exploradoras e egoístas, acabe como um escravo construindo o reino de outra pessoa naquela mesma terra mais tarde.

Não acho que as Escrituras difamam José, e nem deveríamos achar isso. Todos os personagens bíblicos são diversos, moralmente falando, e há muito o que se admirar em José. Nem devemos ignorar o sofrimento que ele mesmo experimentou no Egito. Ele conhecia bem a injustiça e o medo enfrentados pelos imigrantes em todo o mundo. Mesmo com uma visão perfeita da situação, a história é mais trágica do que tirânica.

O problema é que essa tragédia política se repete em nossos próprios fracassos. Mas qual é a alternativa?

A “Opção Daniel” para integrar política e religião

O livro de Daniel começa com histórias sobre a vida de Daniel e seus amigos no cativeiro da Babilônia. Como José, eles são violentamente retirados de sua terra natal e forçados a servir a um regime sob o qual sofreram. Como José, eles prosperam nesse serviço. Mas seu testemunho político e discipulado divergem de maneiras significativas.

Primeiro, Daniel frequentemente ora e jejua, tanto na crise quanto como um ritual diário. Enquanto José fala SOBRE Deus, Daniel está disposto a morrer em vez de abandonar seu hábito de diariamente falar COM Deus.

Em segundo lugar, José abraça uma assimilação quase completa na cultura e sociedade egípcia. Ele aceita um nome egípcio, casa-se com a filha de um sacerdote pagão e afirma praticar adivinhação egípcia. Quando seus irmãos aparecem, ele se parece com um egípcio, fala como um egípcio e come como um egípcio.

Daniel e seus amigos, por outro lado, aceitam nomes babilônicos, mas recusam a comida imperial. Embora não houvesse nenhuma regra que exigisse isso, Carol Newsom sugere que resistir à assimilação total exigia que eles traçassem seus limites em algum ponto.5Newsom, Daniel, 48. Seu processo comunitário de discernimento permitiu-lhes decidir onde terminava a busca pelo bem da cidade e onde começava a idolatria política.

Em terceiro lugar, o testemunho político de Daniel exigiu que ele arriscasse sua vida para confrontar as autoridades políticas, tanto para seu próprio bem quanto para o bem dos outros. Ele diz na cara de Nabucodonosor que seu reino, e todos os que o seguirem, serão destruídos em pó pelo reino de Deus. Em outro confronto, Daniel oferece a Nabucodonosor conselhos sobre como estender seu reinado e tornar Babilônia novamente grande: “Expiai os vossos pecados com justiça e as vossas iniquidades com misericórdia para com os oprimidos”. Daniel ousa enfrentar as políticas opressivas de seu chefe imperial e buscar o tipo de justiça consagrada na lei israelita em nome de toda a comunidade. Considerando que as ações de José lhe rendem o louvor do Faraó, o resultado inesperado do ousado testemunho político de Daniel é o elogio do rei pagão ao único Deus verdadeiro.

Eu suponho que Daniel nos ofereça uma ilustração de como é a aparência de um testemunho político fiel no momento em que nos é dada a oportunidade de influenciar o processo político diretamente. O que poderia significar para a igreja abraçar esse discipulado político hoje?

Primeiro, o tipo de discipulado político que Daniel demonstra não acontece por acidente. Daniel e seus amigos se tornaram discípulos políticos por meio de disciplinas morais e espirituais, incluindo oração, jejum, estudo das Escrituras e discernindo juntos quando cooperar com o poder político, como e quando resistir a ele. A história de Daniel nos ajuda a perguntar: Nossas disciplinas morais e espirituais nos convidam a jurar nossa lealdade primária somente a Deus? Estamos discernindo e debatendo em comunidade em que momento se deve recusar a comida do império, mesmo quando parece tão boa? Mesmo quando recusar parece suicídio político?

Em segundo lugar, Deus dá a Daniel a capacidade de ver além da propaganda política e discernir as tendências idólatras de cada sistema político.

Nabucodonosor, por exemplo, parece o rei do universo. Mas os sonhos e visões que Deus capacitou a Daniel para que interpretasse por Nabucodonosor revelam um quadro diferente. Na melhor das hipóteses, ele é uma estátua brilhante esperando para ser esmagada pelo reino de Deus. Na pior delas, ele é um tirano idólatra que aprendeu que se você agir como uma besta por tempo suficiente, Deus pode simplesmente transformá-lo em uma.

Na segunda metade do livro, Daniel recebe visões que descrevem os futuros poderes políticos como monstros terríveis que devoram e destroem. Essas visões apontam para tempos em que não haveria possibilidade de cooperação entre o povo de Deus e os poderes políticos pagãos. Alguns leitores acham que esses capítulos contradizem a imagem mais otimista de Daniel prosperando, e até mesmo instruindo reis pagãos na primeira metade do livro.6Muitos estudiosos identificam as duas metades do livro como representando os pontos de vista de duas comunidades diferentes cujas perspectivas podem ser irreconciliáveis. Mas, como ficará claro, acho que isso omite o modo como a tensão entre as duas metades do livro é realmente essencial para toda reflexão e ação política.

Mas talvez essa tensão seja parte do ponto. Talvez seja apenas lembrando a propensão implacável à idolatria e opressão de todo o poder político em que podemos discernir a diferença entre o testemunho político fiel e a corrupção. Nesse caso, talvez Daniel possa nos ajudar a evitar a tentação de minimizar as propensões idólatras das pessoas do outro lado do corredor.

Na verdade, Daniel nos lembra que testemunho político fiel inclui criticar o inferno – literalmente – de nossa própria equipe política. Se isso significa, por exemplo, evangélicos que votam nos republicanos enfrentando os ataques desumanizadores do partido contra os imigrantes e refugiados, também significa, por exemplo, evangélicos que votam nos democratas que enfrentam a recusa do partido em defender a vida dos que não nasceram.

Mas as visões de Daniel de regimes políticos monstruosos também nos protegem contra falsas equivalências, contra fingir que todo e qualquer político ou grupo político se mostra igualmente receptivo aos cristãos com uma boa cabeça sobre os ombros. A visão no Apocalipse – de um governo tão mau que o único conselho político possível era parar de dormir com o império e celebrar sua futura destruição – derivou profundamente das visões de Daniel. Embora o discipulado político de Daniel o tenha moldado para buscar o reino de Deus na política sempre que possível, também o preparou para reconhecer que quando os regimes políticos se tornarem idólatras e violentos, a participação não é mais uma opção fiel.

Por fim, a história de Daniel pode nos ajudar a cultivar um tipo peculiar de esperança política. Até mesmo Nabucodonosor pode mudar. Ele pode até aprender uma ou duas coisas sobre o reino de Deus, e isso é uma boa notícia para todo mundo. Ao mesmo tempo, esse sucesso político é de curto prazo e, na melhor das hipóteses, provisório. Mesmo quando o império aprende alguma coisa (Daniel 2), logo se esquece (Daniel 3), e assim por diante, para todo o sempre, amém!

Embora sejamos chamados a trabalhar e esperar por mudanças políticas de curto prazo, Daniel nos lembra que nossa esperança política final está ligada exclusivamente ao triunfo final de Deus sobre todo reino humano. Esta vitória vem exclusivamente de Deus e fora do controle de qualquer poder do homem; a pedra do reino de Deus não foi cortada por mão humana (Daniel 2:45).

A tarefa de nos tornaremos discípulos políticos fiéis é o trabalho de uma vida toda. Se a igreja evangélica falhar em abraçar esse trabalho, independentemente do resultado de nossa atual eleição, temo que continuaremos a ser cooptados por poderes políticos idólatras de esquerda, direita ou centro. Então, vamos trabalhar. E, ao fazermos isso, que toda a Escritura – das cartas de Paulo e João às histórias de Puá e Sifra, Ester e Jesus e, sim, José e Daniel – moldem-nos para amar o próximo e viver como cidadãos do reino de Deus.

Bibliografia

1. Veja Wenham, Genesis 16–50, 400, 452, e especialmente Speiser, Genesis, 353.

2. Jacob Milgrom, Leviticus 24–27, 2192, 2228.

3. Veja Janzen, Genesis 12–50, 179–8.

4. See Matthews, Genesis 11:27–50:26, 848.

5. Newsom, Daniel, 48.

6. Muitos estudiosos identificam as duas metades do livro como representando os pontos de vista de duas comunidades diferentes cujas perspectivas podem ser irreconciliáveis. Mas, como ficará claro, acho que isso omite o modo como a tensão entre as duas metades do livro é realmente essencial para toda reflexão e ação política.