Trabalho, Recompensa, e a Sabedoria de Provérbios num Mundo Complicado

Na minha adolescência, quase que diariamente, eu e minha mãe líamos um provérbio pela manhã. Eu sou muito grato a Deus por esse esforço feito pela minha mãe para inculcar em mim valores bíblicos. Mas, talvez tenha sido essa prática que me fez ter um pouco de dificuldade em ler o livro de Provérbios. Lidos, assim, de forma isolada, os provérbios podem dar a impressão de que a realidade, inclusive o próprio Deus, é mecânica e previsível.

Hoje, depois de mais de uma década envolvido com a vida de crianças, adolescentes e famílias que convivem com a pobreza e a violência, eu sei que a realidade é complexa, muitas vezes injusta. Eu também sei que Deus age de formas surpreendentes, inclusive usando situações e pessoas pouco prováveis para serem meios de comunicação da sua graça e bondade, da sua própria vida, a nós todos, especialmente aos mais necessitados e vulneráveis.

É com esse novo olhar que eu me aproximo do livro de Provérbios, para considerar o que ele tem a dizer sobre a prosperidade humana em um mundo tão desigual. Como eu posso ler, “fique desperto, e terá alimento de sobra” (Pv 20:13b), enquanto os filhos da mãe solteira que trabalha 12 horas por dia recolhendo recicláveis passam fome? Talvez a verdadeira sabedoria do livro de Provérbios não esteja em seus aforismos.

A sabedoria do livro de Provérbios não está em suas afirmações e observações isoladas, mas na relação complexa entre elas. É necessário, portanto, que o leitor tenha um olhar treinado para enxergar tais relações. Às vezes, é necessário considerar diferentes provérbios espalhados por todo o livro. Mas, às vezes, temos uma composição imediata de provérbios que já estão relacionados. Esses casos são importantes, pois podem nos guiar no entendimento da sabedoria do livro de Provérbios.

À luz das questões que tocam minha experiência, eu vejo um exemplo muito interessante em Provérbios 11:23–31. Nessa sequência, diversas afirmações e observações poderiam ser lidas de forma isolada, criando uma visão mecânica e previsível da realidade. No entanto, lidas como um conjunto interligado, percebemos uma visão bastante complexa sobre bondade e maldade, riqueza e pobreza, e como a recompensa de Deus acontece para justos e injustos.

Esta é minha tradução de Provérbios 11:23–31:

O desejo do justo, só bondade; a esperança dos ímpios, ira.

Existe quem gasta por aí, a quem mais é acrescentado; enquanto outro poupa honestamente, só para ter escassez.

A vida de bênção se torna abundante; quem enche o copo dos outros também terá seu copo preenchido. Quem retém a produção, a nação o amaldiçoa; mas a bênção está sobre a cabeça de quem distribui.

Quem busca bondade procura boa vontade; quem perscruta maldade, ela virá ao seu encontro. Quem confia em sua riqueza, tal pessoa cairá, mas como folhagem, o justo brotará. Quem prejudica sua família herdará o vento, e o tolo é servo do sábio.

O fruto do justo é árvore da vida, e quem cativa vidas é sábio.

Vejam! O justo é recompensado na terra; quanto mais ainda o pecador ímpio.

O livro de Provérbios oferece uma sabedoria proveniente da experiência humana relacional: a humanidade em relação com a criação, a humanidade em relação com Deus, e dos indivíduos em relação com outros indivíduos na vida em comunidade. Seus aforismos só funcionam, por assim dizer, quando entendidos como linguagem maxímica, ou seja, dentro de um contexto de vivência e performance. Dru Johnson, que toma esse conceito de Michael Polanyi, diz que a linguagem maxímica não tem sentido em si mesma, mas propõe guiar ou redirecionar para uma forma específica de conhecimento e ação na realidade.1Dru Johnson, Biblical Philosophy: A Hebraic Approach to the Old and New Testaments (Cambridge: Cambridge University Press, 2021), 241, 255. Johnson até usa o livro de Provérbios como exemplo de como a linguagem maxímica funciona na Bíblia Hebraica. Linguaguem maxímica é sobre a aquisição de habilidades para a vida. Assim, o significado de três pimentas vermelhas como um indício de comida bem apimentada é óbvio no contexto de um menu de restaurante e tem a intenção de ajudar você a escolher sua refeição conforme suas expectativas. Esse significado, porém, não é ontológico, não é uma afirmação sobre a realidade independente de um contexto e um propósito bem específicos. Quando nos aproximamos de Provérbios da perspectiva de que sua sabedoria é proveniente de um olhar agudo para a realidade no contexto específico da experiência humana, a complexidade de sua visão aflora.

Pelo lado positivo, Provérbios 11:23–31 caracteriza o justo como aquele que deseja a bondade. Esse texto define a bondade de forma bem prática a partir de ações, relações, recursos e comida. Quem sai gastando por aí enriquece e quem poupa honestamente fica sem nada. Pensando na vida em comunidade, essa afirmação, que parece contrária a tudo o que sabemos sobre economia moderna ocidental, faz todo sentido. Gastar por aí, nesse conjunto de provérbios, significa “encher o copo dos outros”, “distribuir a produção”, “procurar a boa vontade”, “ter fruto como árvore da vida”. Não se trata, portanto, do gasto egoísta para satisfazer desejos consumistas. Muito pelo contrário, é um gasto deliberado de generosidade que visa o bem comum. De uma perspectiva mais próxima à nossa, e com possibilidade de aplicação ao nosso contexto, poderíamos falar de um investimento sábio. Gastar para o bem da comunidade é o melhor “seguro” para o bem-estar de indivíduos.

Pelo lado negativo, o texto faz uma afirmação contra-intuitiva de que quem poupa honestamente tem escassez. Aqui, de novo, também não podemos começar a partir da nossa experiência ocidental, individualista, consumista. Na percepção sábia da vida humana, particularmente comunitária, de Provérbios, quem poupa honestamente é alguém que “retém a produção”, “confia na riqueza” e “prejudica a família”. Esse, então, é um investimento tolo, que somente considera o bem-estar individual de curto-prazo, e destrói o bem da comunidade. Como veremos, a destruição da comunidade acabará na destruição do indivíduo.

Parte de como o texto define o justo e o ímpio, o sábio e o tolo, a vida de bênção e a vida de maldição, é por meio de imagens da natureza. O versículo 28 diz que quem confia em sua riqueza cairá, mas o justo brotará como folhagem. E o versículo 30 expande essa imagem dizendo que o fruto do justo é árvore da vida, e quem é sábio cativa vidas, significando que ele atrai pessoas a sua volta. Essas imagens revelam a visão relacional que Provérbios tem da vida e como Deus age por meio da realidade criada. Confiar na riqueza, o que leva a pessoa a reter os bens, isola a pessoa da comunidade; pior ainda, a torna alvo da ira das pessoas a sua volta. Uma árvore isolada cai com mais facilidade, assim como alguém que prejudica sua família por consumir seus recursos de forma desproporcional ou por se negar a contribuir para a produção familiar, e então herda o vento. Por outro lado, quem “gasta por aí”, investe no bem dos outros e da comunidade, tornando-se a árvore da vida, como a de Gênesis 1. Tal árvore é sustento para a vida, portanto, atrai para perto de si muitas vidas. Diferente do ímpio, a árvore isolada que cai com o vento, o sábio contribui para a fertilização do solo ao seu redor, e assim ela mesma permanece firme por ter outras árvores a sua volta.

A construção dessa sequência de provérbios lança luz sobre a sabedoria a respeito do trabalho e da recompensa. Quanto a isso, Provérbios é tipicamente entendido como se fundamentasse a meritocracia. Seus aforismos são usados como ferramenta de acusação contra os pobres, como se sua pobreza fosse somente o resultado de serem preguiçosos. Pior ainda, a pobreza é entendida como recompensa divina justa que segue uma lei mecânica. Se, porém, em vez de isolarmos os aforismos de Provérbios, os encaixarmos juntos, as coisas mudam bastante.

Em vez de uma ferramenta de acusação ou juízo, o texto em questão é um ensino e uma exortação a respeito das dinâmicas de trabalho e recompensa na vida em comunidade. A recompensa de Deus como bênção ou como maldição se dá no âmbito das relações humanas. A maldição está numa relação social que ignora o bem-estar da comunidade e a bênção está numa relação social de bondade recíproca. O melhor exemplo disso está no versículo 25: “A vida de bênção se torna abundante; quem enche o copo dos outros também terá seu copo preenchido”. Ora, quem encherá o copo daquele que encheu o copo dos outros? Por um lado, a linguagem de bênção, e o verbo no modo passivo, sugerem que é Deus quem enche o copo e o recompensa. Por outro lado, o contexto comunitário por trás do texto e as imagens botânicas empreendidas sugerem que alguém na comunidade, quando for preciso, retribuirá o favor, sendo essa a boa vontade achada por quem busca a bondade. No fim, a recompensa divina se dá por meio da vida em comunidade. No caso da maldição, é a consequência de uma vida que destrói a comunidade que, por sua vez, destruirá também o indivíduo ganancioso e egoísta, de uma forma ou de outra. É por isso que o texto é concluído com esta frase: “Vejam! O justo é recompensado na terra; quanto mais ainda o pecador ímpio”.

No entanto, tais provérbios não podem ter sua lógica usada de forma reversa. O fato de pessoas colherem maldições não implica o contrário: que todo sofrimento é o resultado das escolhas de vida daquele que sofre. Não podemos, ao ver alguém numa situação de miséria e pobreza, como árvore caída e ressequida, concluir que tal pessoa deve ser um tolo colhendo as consequências da sua própria tolice. A experiência da vida em sociedade em suas complexidades invalida tal lógica. Neste caso, a sabedoria de Provérbios se torna em tolice ou, muito pior, injustiça e opressão. Quanto à miséria e pobreza, a lógica desses provérbios é bem diferente. Em vez de uma ferramenta de acusação ou juízo contra os que se encontram na pobreza, essa sabedoria de Provérbios lança luz sobre o tipo de sociedade que produz pobreza e miséria. Parece-me que a própria existência da pobreza e da miséria é a recompensa divina contra uma sociedade pecadora e ímpia, que “poupa honestamente”, mas recebe escassez, porque a árvore que cresce sozinha está fadada a cair. A verdadeira sabedoria desses provérbios, quanto ao trabalho e a recompensa, é que o trabalho tem como objetivo a generosidade e a dispendiosidade que criam uma comunidade mais forte e mais verdejante que, por sua vez, protege os indivíduos de experimentarem a escassez, a pobreza e a miséria. É em tal comunidade onde se pode encontrar a árvore da vida, a bênção e a dádiva de Deus.

Se tentarmos entender a vida a partir de alguns relances da nossa experiência, será difícil discernir ou construir algo significativo. Precisamos de uma perspectiva mais ampla e complexa. Lavar os pés sujos dos meus filhos ou brincar de esconde-esconde pela casa são experiências significativas que fazem o meu relacionamento com meus filhos ser o que é. Mas se eu isolar essas experiências de muitas outras, elas não definirão, de fato, quem eu sou como pai, muito menos como pessoa, ou o significado da minha vida. O livro de Provérbios oferece várias boas idéias sobre a experiência humana neste mundo. Essas boas idéias são interessantes em si mesmas, mas separadas de várias outras boas idéias encontradas no livro e, talvez ainda mais importante do que isso, separadas de experiências da vida real, elas têm pouco significado. Cada provérbio precisa ser testado pelos outros provérbios. Eles também devem ser testados por experiências da vida real, histórias de pessoas reais no mundo real. Sem esse esforço, não seremos formados pela sabedoria de Provérbios, mas o utilizaremos de forma tola.

Bibliografia

1. Dru Johnson, Biblical Philosophy: A Hebraic Approach to the Old and New Testaments (Cambridge: Cambridge University Press, 2021), 241, 255. Johnson até usa o livro de Provérbios como exemplo de como a linguagem maxímica funciona na Bíblia Hebraica.