Conflitos Familiares e a Restauração do Cosmo III: Uma Estrangeira Detém o Cetro do Rei

Violência encheu a terra e Deus apertou o botão de reiniciar. A estratégia de Deus para restaurar esse cosmo em conflito é uma família. O problema é que mesmo essa família é bem conflituosa. Mas é exatamente isso que conta. A resolução de conflitos na família eleita se torna o meio para a restauração do cosmo. Aprendemos com Abraão, Sara e Agar, em Gênesis 16, que essa restauração depende de uma atitude de humildade e servidão, mesmo a ponto de arriscar a própria vida. Agar, a escrava egípcia, exemplificou essa elevada moralidade para a família de Abraão. E é no contexto do Egito que a família de Abraão deve aprender como resolver conflitos que têm impacto cósmico. José e seus irmãos disputam por liderança. Quem entre eles se tornará um dos reis que surgirão de Sara, como foi prometido por Deus em Gênesis 17:16? Depois de uma sequência de eventos dramáticos e ameaçadores, aprendemos, de novo, que humildade e servidão é o caminho para resolver conflitos familiares e restaurar o cosmo.

Em Gênesis 37–50, aprendemos que os reis que surgirão de Sara servirão e preservarão as vidas daqueles sobre quem governam, especialmente os mais vulneráveis. Ainda que pareça que José é o foco de Gênesis 37–50, veremos nesta parte final da série que a narrativa coloca Judá em destaque.

O que Gênesis 38 está fazendo aqui?

José é vendido como escravo a Potifar, no Egito. Esse é um belo gancho de suspense na narrativa; queremos saber o que vai acontecer a seguir. Mas em vez de nos contar isso, o capítulo seguinte em Gênesis muda para uma história sobre Judá e sua família. A intrusão dessa história tem intrigado intérpretes por um longo tempo. Graças a eruditos especializados em crítica literária,1Robert Alter deve ser reconhecido como um pioneiro que traçou um caminho para uma melhor apreciação da arte literária das narrativas bíblicas em sua forma final, incluindo o papel de Gênesis 38 em seu context literário de Gênesis 37–50. Ver Robert Alter, The Art of Biblical Narrative, Revised and Updated (New York: Basic Books, 2011), 1–13. agora temos bons motivos para vermos o quanto Gênesis 38 é crucial para o significado completo de Gênesis 37–50.

Ao atentar para os marcadores literários que conectam Gênesis 38 com Gênesis 37–50, David A. Bosworth o qualifica como um mise-en-abyme.2The Story within a Story in Biblical Narrative (Washington, DC: The Catholic Biblical Association of America, 2008). Num mise-en-abyme, a menor parte e o todo criam uma dinâmica em que as duas partes interpretam uma a outra. Vamos conferir as conexões literárias.

 Judá foi o irmão que propôs vender José como escravo (Gn 37:26-27), fazendo com que José fosse “levado” (hûrad, Gn 39:1) para longe de sua família. Depois desse evento, o próprio Judá decide “deixar” (wayyēred, Gn 38:1) sua família. Assim, a continuação da história de José, em Gênesis 39:1, usa o mesmo verbo que o início da história de Judá em Gênesis 38:1.

Enganação é um tema importante em toda a narrativa de Gênesis 37–50. É interessante que um cabrito é usado em Gênesis 37 e 38 como parte do esquema de engano dos irmãos contra José e de Tamar contra Judá. Os irmãos tingem a túnica de José no sangue de um cabrito (śǝʿîr ʿizzîm, Gn 37:31) para enganar seu pai. E um cabrito (gǝdî-ʿizzîm, Gn 38:17) se torna a prova de que Judá foi enganado por Tamar.

Temos, então, um marcador que conecta Gênesis 38 com seu contexto literário no nível do enredo e de um tema. O outro marcador é mais significativo. Ameaçada de ser queimada viva, Tamar envia (šālǝḥâ, Gn 38:25) os objetos pessoais de Judá, e exige que ele “reconheça!” (hakker-nāʾ, Gn 38:25). Essa é uma referência clara do episódio em que os irmãos de José enviam (wayĕšallĕḥû, Gn 37:32) sua túnica pessoal tingida no sangue do cabrito para que Jacó “reconheça!” (hakker-nāʾ, Gn 37:32). Esse marcador textual relaciona o papel de Judá nos crimes cometidos contra José e contra Tamar. No caso de Gênesis 38, trata-se do ponto de partida para sua transformação de caráter. Essa transformação é indicada por sua dramática exclamação: “Ela é a justa, não eu” (Gn 38:26).3De acordo com Bruce Waltke e M. O’Connor, An Introduction to Hebrew Biblical Syntax (Winona Lake: Eisenbrauns, 1990), 265–6, a construção sintática hebraica com mimmennî é “uma comparação de exclusão”, significando que somente uma parte da comparação possui a qualidade do adjetivo ou do verbo estativo, excluindo a parte com a qual se está comparando. Para essa tradução exata, ver Richard J. Clifford, “Genesis 38: Its Contribution to tile Jacob story”. Catholic Biblical Quarterly 66 (2004): 530.

O reconhecimento da justiça de Tamar por parte de Judá é crucial para entender o significado de Gênesis 37–50. Vimos em meu artigo anterior que Gênesis 37–50 é sobre o caráter dos reis que surgirão de Sara. Em vez de dominarem sobre seus súditos, como parecia ser o significado dos sonhos de José, eles precisam arriscar suas próprias vidas para o benefício de seus súditos. Essa lição profunda é condensada na breve história de Judá e Tamar, que é o ponto de partida para o desenvolvimento de caráter no restante de Gênesis 37–50.

Em Gênesis 38, Judá está vivendo numa terra estrangeira, se casa com uma cananeia e tem três filhos com ela. Seu filho mais velho, Er, também se casa com uma cananeia,4A identidade de Tamar nunca é mencionada como no caso da esposa de Judá. Mas sua origem cananeia é implicada pelo contexto da terra de Canaã. Ver Clifford, “Genesis 38”, 525–6. Tamar. Apesar de o nome Tamar ser derivado da incrivelmente frutífera tamareira, ela não concebe nenhum filho. Deus considera Er ímpio, fazendo-o morrer antes que pudesse ter filhos. Judá diz a seu irmão, Onã, para que tenha relações sexuais com Tamar, a fim de dar um herdeiro a Er. Ele aproveita a oportunidade para ter relações sexuais com Tamar, mas intencionalmente age para evitar dar um herdeiro ao seu irmão mais velho. (Irmãos disputando sua posição dentro da família, parece com José e seus irmãos.) Deus considera esse ato maligno e também o faz morrer. Seria a culpa de Tamar? A linhagem de Judá desaparecerá por causa de uma cananeia?

O que está em jogo aqui é a linhagem de Judá, e a promessa e o plano de Deus para a família eleita. Assim, trata-se de uma ameaça ao plano de Deus de restauração de todo o cosmo. Assim como o favoritismo de Jacó por seu caçula José colocou toda a sua família em perigo, agora, Judá coloca sua linhagem em perigo ao enviar Tamar de volta à casa de seu pai como viúva, para proteger seu caçula, Selá.

Em tais circunstâncias, o que Tamar faz? O aspecto mais importante de sua ação é que ela é baseada em seu compromisso com a família de Judá, aqueles que fizeram tão mal a ela. O que Tamar faz é o ponto central da lição que devemos aprender de sua história.

Destituída de qualquer autoridade para exigir seus direitos na família de Judá, Tamar age de forma arriscada. Ela retira suas vestes de viúva, coloca um véu, e espera onde Judá passará em seu caminho para a tosquia das ovelhas (Gn 38:12–14). Não existe nenhum indício de que Tamar se vestiu ou intencionou ser vista como uma “prostituta” (zōnâ). É Judá quem interpreta a situação dessa forma (Gn 38:15). A percepção de Judá pode ter sido influenciada pelo fato de a tosquia das ovelhas ser uma ocasião tanto de trabalho quanto de festividades alegres, incluindo consumo excessivo de vinho e relações sexuais promíscuas. É ele quem se aproxima dela e faz a proposta de ter relações sexuais. Ela concorda.

Tamar está planejando dar um herdeiro ao seu marido. Se ela não conseguir fazê-lo por meio de Selá, ela o fará por meio de Judá. Seu plano tem a prioridade de perpetuar a linhagem de Judá. É claro que seu plano a beneficiaria também. Ela poderia voltar ao seu lugar de direito na família de Judá. Contudo, o risco de tal feito era grande demais para ser explicado pelo benefício que ela alcançaria com isso. Engravidar na condição em que ela se encontrava, na casa de seu pai e ainda debaixo da autoridade de Judá, colocava sua própria vida em risco.

Tamar está arriscando sua vida pelo bem-estar da família de Judá, mesmo sendo eles aqueles que abusaram dela tantas vezes. Essa é a definição da justiça de Tamar. Isso é muito semelhante com o que aprendemos com José e seus irmãos, especialmente porque em ambos os casos os mais beneficiados são os “pequeninos”. Isso é explícito no caso de José e seus irmãos (Gn 43:8; 45:19; 46:5; 47:12; 47:24; 50:8, 21), enquanto no caso de Tamar é mais implícito, com o nascimento dos gêmeos, assim como José teve gêmeos. Mas a preocupação com os “pequeninos” se torna um tema em ambos os casos, pois a prioridade de linhagem dos gêmeos de Tamar e dos gêmeos de José é invertida, com os mais novos superando os mais velhos (Gn 38.28–30; 48.13–20).

O meu argumento de que a justiça de Tamar é um modelo para a família eleita em todo o contexto de Gênesis 37–50 vai além, como veremos nos próximos dois tópicos. Mas a peça final de evidência em Gênesis 38 para o que quero argumentar abaixo tem a ver com os objetos pessoais que Judá dá a Tamar como penhor (Gn 38:17). Judá dá nas mãos de Tamar, por sua exigência, objetos pessoais importantes que dizem respeito à sua identidade: seu selo com o cordão e seu cajado (Gn 38:18). O cordão é, provavelmente, um tipo de colar onde ficaria pendurado, próximo ao peito do seu dono, o selo com sua insígnia. Já o cajado, apropriado para o propósito da viagem de Judá, a tosquia das ovelhas, provavelmente teria o seu nome inscrito nele.5Cf. Othmar Keel, “Ancient Seals and the Bible”. Journal of the American Oriental Society 106.2 (1986): 307–8.

O significado dessa cena é que Judá está cedendo a Tamar sua posição legal e social. Isso já é bastante relevante, mas fica ainda melhor se considerarmos que Gênesis 37 é sobre a disputa por domínio e servidão entre os filhos de Jacó da perspectiva dos sonhos de José e a promessa de Deus sobre Sara. Enquanto a narrativa nos deixa em suspense sobre como esse conflito irá ser resolvido, qual irmão cumprirá a promessa e o caráter desses reis, vemos Judá cedendo a Tamar sua posição social na família eleita. Ele lhe dá os objetos que representam sua autoridade tribal e, como a narrativa se desenvolverá, até mesmo sua autoridade régia. É essa cena que faz de Tamar a personagem representativa do que será desenrolado na narrativa.

O protagonismo de judá

Temos que passar por alguns capítulos para descobrir o destino de José no Egito, antes de encontrarmos Judá e seus irmãos novamente. Uma vez que os encontramos, no capítulo 42, uma leitura cuidadosa revela que Judá é o protagonista entre seus irmãos e sua família. Em todas as interações entre Jacó e seus filhos, e também entre os irmãos e o ainda não revelado José no Egito, é Judá quem consegue resolver a tensão e levar a família à reconciliação.

Tudo começa com os argumentos usados por Judá com Jacó sobre a necessidade de levar Benjamim ao Egito: “Envia o rapaz comigo, nós nos levantaremos e iremos, para que sobrevivamos e não morramos, nem nós, nem você, nem nossos pequeninos” (Gn 43:8). Jacó, como Judá em Gênesis 38, queria proteger o seu caçula. Judá, porém, aprendeu com a justiça de Tamar. Em vez de lutar por esse favoritismo, como ele e seus irmãos fizeram em Gênesis 37, ele deve considerar a sobrevivência e o bem-estar da família acima de sua própria segurança. A vida dos “pequeninos” vale o risco.

Então, quando José, ainda disfarçado, ameaça aprisionar Benjamim, Judá argumenta com José num longo discurso (Gn 44:18–34). Perto do fim do discurso, Judá toma para si a responsabilidade pela vida de Benjamim, expressa sua preocupação com seu pai, e lamenta sua culpa caso não retorne o seu irmão caçula ao seu pai (Gn 44:32, 34). Então, ele finalmente mostra o quão disposto está de se responsabilizar: ele oferece sua vida no lugar da vida de Benjamim. Ele se tornaria um escravo para livrar Benjamim (Gn 44:33).

Essa é a justiça que Judá aprendeu com Tamar. Ele oferece sua própria vida em favor de sua família, em favor de seu irmão caçula, para que os “pequeninos” possam viver. E esse é o ponto de reviravolta para toda a família, especialmente José. A partir disso, José reconhece o propósito de Deus em sua experiência trágica causada pela violência de seus irmãos contra ele (Gn 45:7–8). A disposição de Tamar em arriscar sua vida, em favor da família que lhe causou sofrimento, fez Judá perceber que sua auto-preservação em detrimento do bem-estar de Tamar era injusta. Agora, a disposição de Judá em arriscar sua vida em favor de sua família, em vez de lutar por sua auto-preservação, faz José cair em si e desistir de seu esquema mesquinho e egoísta contra seus irmãos, a fim de reconhecer a justiça de Deus em tudo isso.

O conflito familiar foi iniciado pela disputa dos irmãos por domínio e servidão, com sonhos de realeza que colocavam em risco a sobrevivência de toda a família. A restauração, sobrevivência e bem-estar da família são alcançados pela rejeição dessa disputa, esse tipo de realeza destrutiva. É por meio da auto-entrega para o bem dos outros, especialmente os “pequeninos”, que a família eleita prosperará.

Tamar, a cananeia, é explicitamente qualificada como a justa, que se torna o modelo de justiça para a família eleita em meio à disputa por domínio e servidão, no contexto da promessa divina de reis que surgirão de Sara. A justiça de Tamar não é meramente seguida pela família eleita; tal justiça se torna a principal característica do desenvolvimento de Judá em Gênesis 37–50. A justiça dele é derivada da justiça de Tamar, sua linhagem é a linhagem de Tamar.

A bênção de um leão violento?

Não há dúvidas de que Judá é o foco principal do testamento de Jacó em Gênesis 49. Esse texto é uma das peças literárias hebraicas mais antigas em toda a Bíblia, e é baseada em tradições ainda mais antigas.6Junto com Êxodo 15, Deuteronômio 33, e Juízes 5, é possível que Gênesis 49 seja historicamente do final do período do livro de Juízes (século XI a.C.), contendo discursos que podem remeter até ao século XIV a.C. (Raymond de Hoop, Genesis 49 in its Literary and Historical Context [Leiden: Brill, 1999], 55). O estudo clássico desses textos, com exceção de Juízes 5, e sua datação é Frank Moore Cross and David Noel Freedman, Studies in Ancient Yahwistic Poetry (Missoula: Scholars Press, 1950). Atualmente existem algumas discussões sobre a data desses textos em sua forma final. Kenton Sparks, por exemplo, data Juízes 5 em sua forma final no século IX a.C., e Deuteronômio 33 e Gênesis 49 no século VII a.C. Ver “Genesis 49 and the Tribal List Tradition in Ancient Israel”, 344. Meu principal objetivo aqui é entender Gênesis 49, especialmente sua ênfase em Judá, à luz de minha análise literária e teológica do que apresentei até aqui. Eu espero provar que essa é uma abordagem frutífera, especialmente por Gênesis 49 ser raramente interpretado em seu contexto literário e porque a ênfase em Judá nunca é considerada à luz de seu relacionamento com Tamar.

Podemos ver que Gênesis 49 está relacionado com Gênesis 37–50 pelo tema do poder violento como uma característica dos irmãos em disputa entre si. Quando nos voltamos para os detalhes do discurso sobre Judá, temos a imagem clara de uma figura real com poder universal, que está acima de seus irmãos. A identidade régia de Judá é explicitada no versículo 10: “O cetro não se afastará de Judá; nem o cajado de governante de entre os seus pés; com certeza, deixe o tributo vir até ele; e que a obediência dos povos seja dada a ele”.7Para Gênesis 49, todas as traduções do português são baseadas em de Hoop, Genesis 49 in its Literary and Historical Context, 114. Tributos são pagos a ele, o que pode explicar o imaginário de abundância nos versículos 11–12, e os povos (ʿammîm) o obedecem. Estamos, finalmente, conhecendo um dos “reis de povos” (malkê ʿammîm) que surgirão de Sara (Gn 17:16).

O problema, porém, é que o discurso sobre Judá é provavelmente o mais caracterizado pelo poder violento e até opressivo sobre seus súditos. A primeira coisa que é dita sobre Judá é sua posição em relação aos seus irmãos: “seus irmãos o louvarão; sua mão estará sobre o pescoço de seus inimigos; os filhos de seu pai se curvarão diante de você” (Gn 49:8). A parte mais significativa dessa introdução é a expressão “os filhos de seu pai se curvarão diante de você”. Os sonhos de José e a reação de sua família a eles são marcados pelo uso do verbo “se curvar” (hištaḥăwâ, Gn 37:7, 9, 10). E aqui, em Gênesis 49, vemos num discurso muito mais definitivo que os irmãos se curvarão diante de Judá, não José.

Depois, temos Judá sendo caracterizado como um leão que caça (Gn 49:9). Isso é, obviamente, uma imagem real por todo o antigo Oriente Próximo, especialmente por causa da agressividade predatória que a caracteriza. Nos versículos 11–12 mudamos da violência para abundância, em imagens da videira, vinho e leite.

O que devemos fazer com essa descrição violenta da identidade régia de Judá, que vai tão de encontro com o desenvolvimento de caráter que vimos? A resposta que vejo está num objeto descrito por duas palavras em Gênesis 49:10: o cetro (šēbeṭ) e o cajado de governante (mǝḥōqēq).

Em Gênesis 38, o encontro de Judá e Tamar acontece no contexto do festival da tosquia das ovelhas e um dos objetos pessoais que Judá entrega nas mãos de Tamar é seu “cajado” (maṭṭê). Apesar de a palavra usada em Gênesis 38 ser diferente das outras duas usadas em Gênesis 49, ainda estamos lidando com o mesmo objeto, sendo que cada palavra lhe dá um significado nuançado. Anteriormente vimos que Judá concede a Tamar sua posição legal e social dentro da família eleita. Quando a identidade régia de Judá é finalmente revelada aqui em Gênesis 49, não podemos nos esquecer de Tamar e seu exemplo de justiça. Não podemos esquecer que a identidade régia de Judá, seu “cetro” e seu “bastão de governante”, somente poderia ser atribuída a ele depois de seu “cajado” ter sido dado nas mãos de Tamar.

Assim como o desenvolvimento do caráter de Judá em Gênesis 37–50 depende da justiça de Tamar, assim também é sua identidade régia e seu exercício de poder. O propósito de Gênesis 37–50 é inverter a lógica da disputa dos irmãos por domínio e servidão. Se Judá e sua linhagem são os que cumprirão as promessas de Deus sobre Sara, temos que interpretar Gênesis 49 e a identidade régia de Judá à luz de seu relacionamento com Tamar. O que compõe o caráter régio de Judá em Gênesis 37–50 não é sua violência como a de um leão, nem a abundância de seu reino, nem os tributos e a obediência dos povos, mas seu ato justo de auto-entrega em favor de seu irmãos e de toda a sua família, imitando a justiça de Tamar.

Conclusão

Ao concluirmos essa série com um artigo até que longo, é bom resumir as lições mais importantes que aprendemos. Como sugere o título da série, o plano de Deus para restaurar o cosmo está intrinsecamente vinculado com a forma de reconciliação no microcosmo da família eleita. Por toda a narrativa patriarcal, em que o contexto familiar está no centro do enredo, vemos a resolução de conflitos familiares dependendo de ações de justiça. O que podemos concluir dessas ações é que a definição de justiça é quando alguém arrisca sua vida em favor dos outros, especialmente os mais vulneráveis, os “pequeninos”. Tal justiça depende de desistir da disputa por status dentro da família ou, mais especificamente, desistir da disputa por domínio e aceitar a servidão. Exatamente nesse contexto é que podemos perceber o quanto a reconciliação dentro da família eleita se relaciona com a restauração do cosmo no plano divino. Em Gênesis 12–50, a narrativa apresenta detalhes em que a relevância cósmica dessa família é definida por seu futuro régio e como seu caráter régio será usado e participará na arena política mundial. A mensagem mais surpreendente dessa série é como o plano de Deus trabalha com inversões de expectativas e valores. A inversão de poder coercivo para o poder de auto-entrega é um tema claro nas narrativas patriarcais. Isso foi visto de forma mais clara na história de José. Contudo, eu preciso enfatizar uma inversão final. Esperamos que a família eleita, até mesmo o patriarca Abraão e seus filhos, seja o modelo de justiça e reconciliação. A narrativa, porém, somente segue na direção da reconciliação por causa de duas mulheres estrangeiras: Agar, a egípcia, e Tamar, a cananeia. Isso é bem significativo, especialmente no caso de Tamar e seu papel como fundamento para o caráter régio dos reis que surgirão da família eleita. Tamar, a mulher, estrangeira, vulnerável, moralmente ambígua, abusada e oprimida, apresenta o modelo ético para os reis que descenderão de Judá. Esse modelo não é o leão violento de Gênesis 49, mas a viúva que se entrega em Gênesis 38 e detém em suas mãos o cetro de Judá. Para os cristãos, como eu, sugiro que chamemos Jesus, o rei, não de o leão de Judá, mas o filho de Tamar.

Bibliografia

1. Robert Alter deve ser reconhecido como um pioneiro que traçou um caminho para uma melhor apreciação da arte literária das narrativas bíblicas em sua forma final, incluindo o papel de Gênesis 38 em seu context literário de Gênesis 37–50. Ver Robert Alter, The Art of Biblical Narrative, Revised and Updated (New York: Basic Books, 2011), 1–13.

2. The Story within a Story in Biblical Narrative (Washington, DC: The Catholic Biblical Association of America, 2008).

3. De acordo com Bruce Waltke e M. O’Connor, An Introduction to Hebrew Biblical Syntax (Winona Lake: Eisenbrauns, 1990), 265–6, a construção sintática hebraica com mimmennî é “uma comparação de exclusão”, significando que somente uma parte da comparação possui a qualidade do adjetivo ou do verbo estativo, excluindo a parte com a qual se está comparando. Para essa tradução exata, ver Richard J. Clifford, “Genesis 38: Its Contribution to tile Jacob story”. Catholic Biblical Quarterly 66 (2004): 530.

4. A identidade de Tamar nunca é mencionada como no caso da esposa de Judá. Mas sua origem cananeia é implicada pelo contexto da terra de Canaã. Ver Clifford, “Genesis 38”, 525–6.

5. Cf. Othmar Keel, “Ancient Seals and the Bible”. Journal of the American Oriental Society 106.2 (1986): 307–8.

6. Junto com Êxodo 15, Deuteronômio 33, e Juízes 5, é possível que Gênesis 49 seja historicamente do final do período do livro de Juízes (século XI a.C.), contendo discursos que podem remeter até ao século XIV a.C. (Raymond de Hoop, Genesis 49 in its Literary and Historical Context [Leiden: Brill, 1999], 55). O estudo clássico desses textos, com exceção de Juízes 5, e sua datação é Frank Moore Cross and David Noel Freedman, Studies in Ancient Yahwistic Poetry (Missoula: Scholars Press, 1950). Atualmente existem algumas discussões sobre a data desses textos em sua forma final. Kenton Sparks, por exemplo, data Juízes 5 em sua forma final no século IX a.C., e Deuteronômio 33 e Gênesis 49 no século VII a.C. Ver “Genesis 49 and the Tribal List Tradition in Ancient Israel”, 344.

7. Para Gênesis 49, todas as traduções do português são baseadas em de Hoop, Genesis 49 in its Literary and Historical Context, 114.