Conflitos Familiares e a Restauração do Cosmo II: Realeza e Servidão na Família Eleita

Realeza é um tema importante em toda a Bíblia Hebraica. Na narrativa da criação de Gênesis 1, YHWH qualifica a identidade e a função da humanidade a partir de características da realeza.1Em minha opinião, a obra The Liberating Image: The Imago Dei in Genesis 1, de J. Richard Middleton, oferece o estudo mais abrangente e perspicaz sobre o assunto. Uma qualificação interessante sobre a identidade e função reais da humanidade em Gênesis 1, baseada na relação de parentesco entre YHWH e seres humanos, é apresentada por Catherine McDowell em seu artigo publicado aqui no Center for Hebraic Thought. O ápice do fracasso humano em representar o reinado de YHWH ocorre na construção da Torre de Babel, sob o domínio de Ninrode, uma figura régia que ganha seu poder na terra como um poderoso caçador (Gn 10:8–10). Tal fracasso leva YHWH a “formatar” a criação para desenvolver um novo plano, agora com uma família específica: Abraão, Sara e seus descendentes. Aqui, mais uma vez, surge a questão da realeza. YHWH declara o seguinte sobre Sara: “Eu a abençoarei e dela procederão nações e reis de povos” (Gn 17:16).

Em meu primeiro artigo para o Center for Hebraic Thought, eu mostrei que a moralidade da resolução de conflitos é apresentada na narrativa de Abraão, Sara e Agar, em Gênesis 16, como sendo parte do modo de YHWH lidar com os conflitos cósmicos. O ensino básico dessa narrativa bíblica é que conflitos, sejam particulares ou cósmicos, somente encontram resolução e tornam a bênção divina possível se todas as partes envolvidas demonstram uma atitude de humilhação e servidão, mesmo ao ponto de se arriscar a própria vida.  Essa atitude foi modelada por Agar, e foi seguida por Abraão e Sara. Eu também demonstrei como a família eleita precisava passar por uma experiência de humilhação no Egito, a terra de Agar, para aprender essa atitude.

A caminho dessa experiência, encontramos a narrativa dos filhos de Jacó, especialmente de José, em sua luta com realeza e servidão. Neste artigo, parte II do meu estudo prévio, eu abordarei a luta de José e seus irmãos para identificar a moralidade hebraica para a realeza. As perguntas que estão por trás da minha investigação, e que tentarei responder, surgem da promessa divina a Sara em Gênesis 17:16. São estas: quem serão esses reis e que tipo de governo eles exercerão? Essas perguntas têm a ver com realeza e servidão. Se no início parece que a condição de realeza implica em servidão dos outros, ao final seremos surpreendidos com uma realeza serva.

Eu Tenho um Sonho . . . de Reinar

O conflito entre José e seus irmãos parece ter um roteiro bem definido: os dois sonhos de José (Gn 37:5–10). Eles estão sempre nas entrelinhas da narrativa, mesmo quando alguns de seus aspectos são frustrados ao invés de cumpridos. No primeiro sonho aparece a imagem de “feixes de grão no campo” (Gn 37:7). No segundo sonho temos a imagem de corpos celestes: “o sol, a lua e onze estrelas” (Gn 37:9). Essas imagens carregam importantes significados culturais e relações textuais com outras partes do livro de Gênesis.

A imagem de corpos celestes indica que eventos na narrativa dizem respeito não somente a essa família, mas também a todo o cosmo. Aqui, novamente, encontramos um problema de uma família particular com relevância cósmica. Os corpos celestes também são importantes símbolos políticos (ver Nm 24:17; Is 14:12),2Corpos celestes como símbolos políticos se fundamentam em seu uso para identificar divindades e, então, da relação entre divindades e reis. Mark S. Smith, por exemplo, mostra como as divindades do segundo escalão do panteão ugarítico são identificadas com corpos celestes, por exemplo, Shapshu (Sol), Yarih (Lua) e Athtar (Estrela-da-manhã). Ver Mark S. Smith, O Memorial de Deus: História, Memória e a Experiência do Divino no Antigo Israel (São Paulo: Paulus, 2006), 152. o que conecta essa narrativa com a promessa sobre Sara. Até certo ponto os aspectos cósmicos e políticos estão relacionados, portanto os sonhos de José apontam para “domínio cósmico”, por meios políticos.3Ver Leon R. Kass, The Beginning of Wisdom: Reading Genesis (Chicago: University of Chicago Press, 2006), 518.

A imagem dos “feixes de grão no campo” não é o que esperamos de uma família nômade e pastoril. Ainda que pudesse ser uma imagem que relacione os sonhos de José com a atividade que ele virá a exercer no Egito, o que inclue “juntar” (qābaṣ, Gn 41:48), “armazenar” (ṣābar, Gn 41:49), “comida” (ōkel, Gn 41:48) e “grão” (bār, Gn 41:49),4É assim que Casey Strine entende a imagem, porque seu interesse na narrativa é com as questões de fome e migração e não com a dinâmica de poder da família. Ver Casey A. Strine, “The Famine in the Land Was Severe: Environmentally Induced Involuntary Migration and the Joseph Narrative”. Hebrew Studies 60 (2019): 55–69, especialmente 59. eu acredito que existe mais significado nessa imagem. Em outra narrativa de conflito entre irmãos, o contexto do “campo” (baśādeh, Gn 4:8)5Essa palavra pode significar um campo aberto ou pode descrever uma terra cultivada. O segundo sentido é encontrado, por exemplo, no Código de Santidade (ver Jeffrey A. Fager, Land Tenure and the Biblical Jubilee: Uncovering Hebrew Ethics through the Sociology of Knowledge [Sheffield: Sheffield Academic Press, 1993], 89). Em Gênesis 4 pode significar um campo aberto por causa da associação entre esse lugar e crimes cometidos quando não há a possibilidade de pedido de ajuda (ver Dt 22:25–27; ver Gordon Wenham, Genesis 115 [Dallas: Word, Inc., 1987], 106). Porém, por causa das atividades agrícolas de Caim, é provável que o significado seja terra cultivada por “irrigação e esforços humanos” (Wenham, Genesis 115, 58). é crucial. No conflito entre Caim e Abel, a tensão está entre o estilo de vida pastoril de Abel, típico do nomadismo da família de Abraão, e o estilo de vida agrícola de Caim, típico das monarquias urbanas sedentárias.6Ver Ithamar Gruenwald, Rituals and Ritual Theory in Ancient Israel (Atlanta: Society of Biblical Literature, 2003), 44. Para um estudo abrangente da cultura pastoral em contraste com a agricultura, ver Yoram Hazony, The Philosophy of Hebrew Scripture (Cambridge: Cambridge University Press, 2012), 103–39. É exatamente essa última relação que o texto pretende quando retrata Caim como um “construtor de cidades” (cf. Gn 4:17), o pai da “cultura urbana” (cf. Gn 4:19–22), e originando uma descendência violenta (cf. Gn 4:23–24). Nessa camada de significado, agricultura e administração urbana formam uma simbiose para explorar a população agrária e pastoril para o benefício da população urbana, exatamente como no Egito.7Gruenwald, Rituals and Ritual Theory in Ancient Israel, 74.

Acostumados com esse tipo de reinado, e entendendo o significado dos sonhos de José, seus irmãos respondem irados (Gn 37:8). Para eles, o primeiro sonho significa que José irá “reinar” (mālak) sobre eles e “dominá-los” (māšal). Esses verbos são usados numa construção sintática para ênfase. Duplica-se o verbo, seu primeiro uso no infinitivo absoluto e, então, no imperfeito, transmitindo mais uma pergunta retórica de reprovação do que qualquer outra coisa (i.e., “você certamente não dominará sobre nós”). Não há dúvida de que a reprovação deles tem a ver com a visão que tinham sobre culturas monárquicas, o que aparece no modo como descrevem o “governador da terra” (Gn 42:6) do Egito, sem saber que era José. Para eles (Gn 43:18c), essa pessoa usa seu poder para “[nos] acusar” (gālal), “[nos] dominar” (nāṭal), para “[nos] capturar” (lāqaḥ) “como escravos” (laʿăbādîm) e “capturar [nossos jumentos]” (lāqaḥ).8Uma tradução literal do hebraico de Gn 43:18c seria: “ele nos trouxe aqui para rolar contra nós e cair sobre nós e nos tomar como escravos e aos nossos jumentos.”

Em ambos os sonhos já nos é sugerido esse tipo de exercício de poder régio na ação de “curvar” (shāḥâ, Gn 37:7, 9). A ação não aponta, necessariamente, para o exercício de um poder coercivo que humilha, mas na resposta de Jacó ao segundo sonho, ele enfatiza o caráter humilhante da ação ao acrescentar a qualificação “até o chão” (ʾarṣâ, Gn 37:10).9Nesse relato existe intertextualidade com a narrativa de Isaque, Esaú e Jacó. Quando Isaque abençoa Jacó, pensando ser Esaú, ele diz o seguinte: “Que as nações o sirvam e os povos se curvem diante de você. Seja senhor dos seus irmãos, e curvem-se diante de você os filhos de sua mãe” (Gn 27:29, NVI). No encontro entre Esaú e Jacó em Gênesis 33, Jacó “curvou-se até o chão (wayyištaḥû ʾarṣâ) sete vezes” (v. 3).

A resposta irada dos irmãos também pode estar relacionada com a atitude de José e sua função na família deles. No início da narrativa (Gn 37:2) o narrador nos diz que José tinha dezessete anos de idade e era “aquele que pastoreava” (hāyâ rōʿeh). A sequência da frase é ʾet ʾeḥāyw. Com essa qualificação, a frase pode significar que José era aquele que pastoreava com seus irmãos ou que ele era aquele que pastoreava aos seus irmãos. Como a informação que recebemos logo depois disso é que José levava ao seu pai más notícias sobre seus irmãos, e que José era o favorito de seu pai, a segunda opção é provável. Assim, José era um tipo de supervisor de seus irmãos. Isso dá um sentido melhor para toda a narrativa. Com isso, explica-se como José poderia ter sonhos tão pretensiosos. Também aponta para a discussão política que a narrativa apresentará, já que pastorear outras pessoas era uma imagem comum de reinado no antigo Oriente Próximo (alguns exemplos bíblicos aparecem em 2Sm 7:7, com seu paralelo em 1Cr 17:6).10Em 2Sm 5:2, um texto sobre a ascensão de Davi como rei de Israel, temos a exata construção com o verbo e a particular de objeto direto: rāʿâ ʾet.

Essas são as implicações dos sonhos de José e toda a narrativa prepara o leitor para imaginar como eles serão realizados. Será José um dos reis que procederão de Sara? Sendo esse o caso, será que ele exercerá seu reinado por meio de um poder coercivo que humilha e até escraviza sua família e todas as outras famílias da terra?

Um Modelo de Reinado de Serviço aos Mais Vulneráveis

Como acontece em outras narrativas bíblicas, a de José não oferece uma lição moral clara e objetiva. As coisas são mais complicadas e ambíguas. Conquanto os sonhos de José são parcialmente cumpridos, suas intenções régias e as expectativas negativas de seus irmãos não são. Considerando, inicialmente, como os irmãos se comportam diante de José no Egito, parece que tudo ocorria conforme eles esperavam. A atitude deles é de servidão. Há diversas ocorrências da raiz hebraica ʿBD (“servir”, “servo”, “escravo”, etc.) no meio da narrativa. Em Gênesis 42:10, os irmãos dizem a José: “Não, meu senhor… seus servos (ʿăbādêkā) vieram para comprar comida”. O mesmo significado do termo aparece nos vv. 11 e 13. Em Gênesis 43:18, os irmãos expressam seu temor de que “o governador da terra” os punirá fazendo-os de “escravos” (ʿăbadîm). Mas não é assim que a narrativa acaba.

Existem dois acontecimentos inesperados ao final. Primeiro, quando Jacó desce ao Egito e se encontra com José, ele não se “curva”, como esperaríamos para o cumprimento do segundo sonho. Eles primeiro se abraçam e choram juntos (Gn 46:29), e mais tarde é José quem se “curva” diante de Jacó (Gn 48:12). O texto deixa claro que se trata de uma inversão de expectativas, pois conquanto Jacó questione José sobre curvar-se “até o chão” em Gênesis 37:10, é José quem se curva diante de Jacó “até o chão” (ʾarṣâ). Segundo, em Gênesis 50:18, após a morte de Jacó, José não se vinga de seus irmãos escravizando-os — frustrando a expectativa deles. O texto prepara o leitor para finalmente ver o cumprimento dos sonhos, conforme a expectativa inicial de José e seus irmãos. O texto diz: “Depois vieram seus irmãos, prostraram-se (wayyippĕlû) diante dele e disseram: ‘Aqui estamos. Somos teus escravos!’ (ʿăbadîm)”. Contudo, o verbo “prostrar”, usado aqui, é diferente de “curvar” (shāḥâ), usado em Gênesis 37:7, 9–10, sendo essa uma das evidências de que a cena não é o cumprimento da interpretação que os irmãos dão aos sonhos. Para a surpresa deles, e também do leitor, José se recusa a tomar a oportunidade para escravizar e subjugar seus irmãos. Pelo contrário, ele escolhe um relacionamento diferente com seus irmãos. Ao invés de um relacionamento entre rei e escravos, em Gênesis 50:21 José estabelece que ele será provedor de seus irmãos.

A importância dessa escolha se torna mais clara quando percebemos que a dimensão política da luta dos irmãos com a realeza não pode ser separada da questão do suprimento de alimentos. A visão nômade crítica da cultura monárquica, como vimos, está relacionada com agricultura, exploração de terra e trabalho, e a distribuição injusta de recursos. A narrativa, no entanto, não somente lida com a fome e o suprimento de comida. Também está em jogo aqui a sobrevivência da família e uma preocupação séria com os filhos pequenos (ṭap, “pequeninos”, Gn 43:8; 45:19; 46:5; 47:12; 47:24; 50:8, 21). Partes cruciais da narrativa relacionam a ameaça de sobrevivência da família com a sobrevivência das crianças, como em 43:8: “Então viveremos e não morreremos — nós e nossos pequeninos”. É assim que a conclusão da narrativa subverte a disputa de reinado entre os irmãos. O que eles acreditavam significar o uso do poder restringir recursos de alimento para o povo, e ameaçar a sobrevivência de seus pequeninos, no fim, significou o uso do poder para prover alimentos a fim de que seus pequeninos pudessem viver.

O resultado do uso de poder por José, não como um rei em conformidade com suas experiências culturais, mas como um servo e provedor para outros, especialmente aos mais vulneráveis, os pequeninos, é que Israel, i.e., a família de Jacó, “frutificou” (wayyiprû) e “multiplicou” (wayyirbû) na terra de Gósen (Gn 47:27). Apontando para Gênesis 1:28, essa é uma expressão clara da bênção divina para toda a humanidade.

Um Monte de Inversões

Como aconteceu essa mudança na vida de José, deixando de ansiar por ser rei sobre seus irmãos para ser o provedor de seus pequeninos? A resposta se assemelha ao que ocorreu com Agar. Eu demonstrei em meu primeiro artigo para o Center for Hebraic Thought que a gravidez de Agar a levou a uma atitude de auto-engrandecimento sobre Sara, mas que foi por meio de sua humilhação e submissão que ela foi inserida na família da aliança e foi abençoada por isso. José também começa com uma atitude de auto-engrandecimento sobre seus irmãos. Em resposta, eles fazem com José o que eles temiam que o “governador da terra” faria com eles: eles o capturam (lāqaḥ, Gn 37:24; cf. 43:18). Como consequência, José é humilhado diversas vezes debaixo de um poder monárquico no Egito, uma experiência causada pelo poder que seus próprios irmãos exerceram sobre ele. Minha conclusão disso é que a pretensão que José tinha de reinar e dominar sobre seus irmãos dá lugar ao seu uso de poder para proteger a vida de seus irmãos e seus pequeninos, porque ele mesmo sofreu debaixo do reinado e do domínio de seus irmãos e de um poder monárquico. A inversão de um desejo por reinar para agir como servo acontece porque José experimenta uma humilhação forçada, como Agar.

A identidade de José como vítima, assim como a de Agar, é importante. É essa experiência de escravidão, opressão e até exílio, que o ensina como Deus enxerga o uso correto do poder para “preservar a vida de muitos povos” (Gn 50:20; cf. 45:5). A decisão de José de servir aos seus irmãos e seus pequeninos, apesar de tudo o que eles fizeram contra ele, parece ser o caminho da justiça por onde a bênção da família de Abraão alcançará todas as famílias da terra (Gn 12:1—3), e por onde a bênção divina alcançará toda a humanidade (Gn 1:28). Portanto, mesmo que José não tenha se humilhado como Agar fez, ele ainda submete seu poder e influência para o bem daqueles que colocaram sua vida em risco, algo muito semelhante ao contexto da experiência de Agar.

Diferentemente de Gênesis 16, a história de José tem um contexto político que torna a lição moral ainda mais ambígua, ainda que torne o conflito familiar e sua resolução ainda mais interessante para entender os conflitos e resoluções cósmicas. Por mais que o papel de José esteja certamente ligado à preservação de sua família e posteridade (Gn 45:7), sua sabedoria e serviço beneficiam muitas outras famílias. A descrição de como as políticas de José são aplicadas começa com um escopo universal: “E toda a terra veio ao Egito, a José, para comprar mantimentos, pois a fome se agravou por toda a terra (bǝkāl-hāʾāreṣ)” (Gn 41:57). Mais adiante, quando a família de Jacó está no Egito, “não havia pão em toda a terra”11Tradução baseada em Robert Alter em The Hebrew Bible: A Translation with Commentary (New York: W. W. Norton and Company, 2018). (wǝleḥem ʾên bǝkāl-hāʾāreṣ, Gn 47:13). É claro que existe um enfoque no Egito e em Canaã, mas a intenção é situar a ação de José numa crise mundial e tendo efeitos globais. É por isso que ao final o foco muda de sua família e sua posteridade para a vida de “muitos povos” (ʿam-rāb, Gn 50:20).

Enquanto a ambiguidade da moralidade da narrativa sobre Agar, Abraão e Sara é bastante limitada à dinâmica dentro da família, aqui a ambiguidade se torna mais generalizada por causa do contexto político. Conquanto seja verdade que José usou seu poder para servir outras pessoas e preservar a vida de muitos povos, sem nenhum indício de coerção, suas políticas ainda foram aplicadas sob a lógica da política de poder. Os benefícios, então, não foram concedidos sem uma porção de comprometimentos sérios. O povo perde sua terra para o faraó e até mesmo vende-se como seus escravos (Gn 47:18–21). De novo, não houve uso de coerção, o povo vende “de bom grado” sua terra e sua força de trabalho como escravos, porque José preservou suas vidas: “Você salvou nossas vidas! Achemos graça aos olhos de meu senhor e seremos escravos do faraó” (Gn 47:25). Mesmo em seu serviço de preservação da vida de muitos povos, José criou o contexto apropriado para o abuso de poder característico de culturas monárquicas que sua família tanto desprezava. No fim, a servidão de José que fez sua família prosperar no Egito durante uma fome severa, também prepara a terra para que eles sejam escravizados e desfaleçam.

Mesmo em meio a essa ambiguidade moral, a narrativa de José ainda pode ser útil para responder as duas perguntas sobre a família eleita que apresentei no início do artigo: quem serão esses reis que procederão de Sara e que tipo de reinado exercerão? É certo que esses reis não exercerão um poder coercivo; pelo contrário, serão servos que usam seu poder para o bem de seus súditos, especialmente dos “pequeninos”, preservando a vida de muitos povos. É claro que isso concorda com o propósito de YHWH para a família de Abraão de abençoar todas as famílias da terra. Levando a sério a luta dos filhos de Jacó com realeza e servidão, fica claro que os reis que procederão de Sara são servos. É por isso que toda a narrativa pode ser confusa, assim como em Gênesis 16. Em ambas, encontramos experiências negativas e positivas de servidão. A servidão positiva, que leva à resolução de conflitos e cria o caminho para a bênção divina, é aprendida por meio da experiência de servidão negativa. Na narrativa de José, a diferença entre as duas é clara, enquanto no caso de Agar a diferença é mais sutil. O que é claro aqui é que a dinâmica entre realeza e servidão é colocada de cabeça para baixo: ser rei é ser servo.

Mas ao final da narrativa de José, sente-se que ele não é um dos reis que procederão de Sara. Yoram Hazony toca numa questão importante a respeito de José. Apesar da mudança de sonhos pretensiosos de reinado para se tornar um servo para o bem de outros, os meios que ele utiliza para preservar a vida de sua família e muitas outras famílias é “o aparato do império.”12The Philosophy of Hebrew Scripture, 134. Parece, então, que nesse contexto político, a moralidade da resolução de conflitos depende tanto da diferenciação entre o uso coercivo de poder e o poder benéfico do serviço, quanto da escolha dos meios utilizados para exercer esse poder. Essa não é uma crítica total da realeza ou da política, mas de certas formas que elas podem tomar. O uso do termo “império” por Hazony indica que se trata de uma questão de poder concentrado e abrangente que não pode ser usado para oferecer a bênção divina, neste caso alimentar os famintos e preservar muitas vidas, sem ter um efeito colateral que compromete a própria bênção. 

Os reis que procedem de Sara, portanto, não reinarão com poder coercivo, mas também não reinarão com as estruturas do império, ou a típica ideologia e organização de monarquias urbanas sedentárias. José foi um grande modelo de reis que procederão de Sara por se desviar de uma visão de reinado pelo poder coercivo para um reinado de serviço. Mas ele ainda fez uso das estruturas e da lógica do império. O interessante é que de todas as inversões que ocorrem na narrativa de José, a maior delas é que sua história não é sobre ele, mas sobre Judá. Esse será o assunto da parte III.

Bibliografia

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