Yoram Hazony: Como a Bíblia supera a dicotomia razão-revelação
As mensagens importantes da Bíblia para o florescimento humano são óbvias. A centralidade da liberdade humana na história do Êxodo ou a perniciosidade da inveja como o ímpeto para o assassinato de Abel por Caim ilustram essa orientação. Há, entretanto, uma divisão culturalmente imposta entre razão e revelação que limita o alcance da cosmovisão bíblica.
Muitas vezes, as pessoas vêem a Bíblia como uma obra de revelação que se opõe à razão humana. Quando os mandamentos bíblicos entram em conflito com a ética contemporânea que é desenvolvida pela razão humana, o enquadramento razão-revelação força as pessoas a escolher entre o que elas percebem como baseado na fé ou mesmo absurdo, e o que elas percebem como razoável.
A abordagem filosófica de Yoram Hazony para a Bíblia oferece uma terceira opção. Ele interpreta a Bíblia como um livro divinamente revelado da razão e, ao fazê-lo, torna a Bíblia profundamente relevante para a compreensão da condição humana e de uma vida bem vivida.
Hazony – filósofo, estudioso da Bíblia, teórico político e presidente do Instituto Herzl – observou em seu livro The Philosophy of Hebrew Scripture que a Bíblia Hebraica se preocupa principalmente com as
histórias de povos antigos e tentativas de tirar lições políticas deles; explorações de como melhor conduzir a vida da nação e do indivíduo; … a busca do verdadeiro e do bom; tentativas de ir além do aqui e agora e tentar alcançar uma compreensão mais geral da natureza da realidade.
Além disso, “não há textos nas Escrituras Hebraicas em que a palavra de Deus seja referida como ‘tolice ou’ absurdo”, afirma Hazony. Embora os humanos possam não compreender o propósito dos mandamentos de Deus, a Bíblia afirma que “a própria palavra de Deus é precisamente a sabedoria que os seres humanos buscam no presente mundo humano.” Ela define o certo e o errado e apresenta os primeiros princípios.
Transferir a Bíblia Hebraica para o que “faz sentido para Deus”, que “exige a suspensão da operação normal de nossas faculdades mentais”, confunde o propósito da Bíblia, explica Hazony. Obras explícitas da razão, em que os humanos usam suas faculdades para determinar sistematicamente o que é verdadeiro e bom na vida, só começam a ser escritas na Grécia no século VI aC. Neste ponto, o Reino de Israel já havia durado por um tempo e sido destruído, e o Reino de Judá estava em sua última etapa. Pelo que sabemos, Israel não teve contato com as cidades-estado gregas. Na época em que Alexandre, o Grande, conquistou o Levante, trazendo consigo a filosofia grega, os livros da Bíblia Hebraica já haviam sido escritos. Simplificando, a Bíblia Hebraica antecede a dicotomia entre razão e revelação e oferece uma visão mais holística.
A própria autodescrição da Bíblia afirma uma visão mais integrada: os mandamentos de Deus são “sabedoria e visão aos olhos das outras nações” (Deuteronômio 4: 6). Em sua compreensão de si mesma, razão e revelação estão em consonância. De acordo com Hazony, portanto, a visão amplamente aceita de que a Bíblia é uma obra de revelação e em oposição à razão cria uma “lente distorcida” e “acidentalmente apaga muito do que esses textos foram escritos para dizer.”
Quando a Bíblia aborda questões filosóficas centrais, ela se distingue em sua concepção e em seu método de exploração filosófica.
Diferenças-chave entre a filosofia grega e a filosofia hebraica
Antes de abordar algumas maneiras específicas como a Torá comunica sua abordagem filosófica da vida, devemos primeiro reconhecer que ela discorda do pensamento grego na compreensão mais básica do conhecimento e da realidade. Ela percebe a vida de maneira diferente e usa palavras semelhantes para significar coisas diferentes.
VERDADE HEBRAICA VS. VERDADE GREGA
Uma diferença epistêmica básica (ou seja, relacionada ao conhecimento) entre a Bíblia e o pensamento grego é como cada um deles entende a verdade e a falsidade. A definição de verdade de Aristóteles (Metafísica 1011b25) concentra-se em como a fala descreve a natureza das coisas, digamos, uma cadeira ou um círculo. A fala é verdadeira quando descreve a forma essencial imutável de um objeto. Este objeto perfeito existe em uma dimensão teórica independente. Na concepção grega, articulação e precisão são os fatores-chave na determinação da verdade e da falsidade.
Em contraste, a verdade (emet / אמת) na Bíblia Hebraica se relaciona com a “qualidade dos objetos”, não com as palavras. Estradas, pessoas e sementes de uva são descritas como verdadeiras, enquanto a atração física e a segurança de um cavalo são rotuladas como falsas. Usada dessa forma, a verdade descreve objetos em que se pode confiar. Esses itens verdadeiros terão um desempenho consistente como deveriam, “apesar das dificuldades geradas por uma mudança nas circunstâncias”, escreveu Hazony.
Por exemplo, apontar para uma rua e afirmar que é uma rua porque é pavimentada, localizada entre as casas, para o uso do público e para a passagem de carros, é uma afirmação verdadeira no pensamento grego. A ênfase está na fala e em sua semelhança com a forma ideal de rua. A Bíblia Hebraica, em contraste, oferece uma compreensão mais pragmática da verdade. A própria estrada pode ser chamada de verdadeira, e sua veracidade consiste em levar adequadamente o viajante ao destino desejado. Não existem formas idealizadas e a realidade pode mudar para melhor atender às necessidades das pessoas.
DISCURSO, PENSAMENTO E OBJETOS
Há uma distinção semelhante no uso da palavra “fala” (davar / דבר). Para Aristóteles, “fala” se limita à palavra falada. Na Bíblia Hebraica, o uso principal de davar também é para fala e corresponde ao versículo freqüentemente repetido “Deus falou com Moisés”, onde o verbo Vayidaber (וידבר) é usado. Ao mesmo tempo, a Bíblia usa a palavra davar (דבר) para se referir a uma “coisa” no sentido genérico, incluindo pensamentos lógicos não falados, objetos materiais ou outras questões jurídicas e eventos humanos.
O continuum integral entre palavras, pensamentos e objetos encontrados em toda a Bíblia anda de mãos dadas com sua concepção de verdade e falsidade. A abordagem grega promove um dualismo, onde as formas ideais, estáticas e perfeitas dos objetos existem em uma dimensão abstrata separada que só pode ser descrita com palavras.
A Bíblia, entretanto, rejeita o dualismo. A verdade e a davar se relacionam com as regras para a vida neste mundo holisticamente integrado e unificado. A concepção grega se inclina para moldar a realidade aqui (objetos e humanos) para formas teorizadas que permanecem separadas, e possivelmente desligadas, da realidade. Em contraste, a Bíblia encoraja um empirismo ético, exortando os humanos a se conformar com as regras da realidade já existentes, que se provaram repetidas vezes (e gostemos ou não).
Diferenças chave entre as abordagens grega e hebraica quanto à racionalização
Visto que o pensamento grego entendia a verdade a ser transmitida por meio da fala, ele se esforçou para ensinar seus ideais com linguagem pura. O Livro XII de Metafísica de Aristóteles, por exemplo, começa definindo termos, enquanto outros, como O Fedro, de Platão, ensinam a natureza das coisas por meio de um amplo diálogo.
A aversão da Bíblia ao discurso puro significa que esperaríamos encontrar uma abordagem diferente para transmitir ideias filosóficas, e de fato o fazemos.
RACIOCINANDO POR MEIO DA NARRATIVA
A Bíblia Hebraica nunca define palavras de forma extensa (embora defina palavras estrangeiras, como Ester 3: 7), e seu diálogo mais longo tem apenas 36 versos (Êxodo 3: 4-4: 17). Ironicamente, essa conversa não é sobre uma ideia, mas sobre convencer Moisés a tirar Israel da escravidão egípcia. Em vez disso, a abordagem empirista da Bíblia usa narrativas sobre ações humanas e suas consequências para ensinar o que Leon Kass descreveu, em The Beginning of Wisdom “não o que aconteceu, mas o que sempre acontece”. Dessa forma, a seção de história da Bíblia usa histórias para transmitir sua filosofia, em vez de linguagem pura.
Ao mesmo tempo, as conversas sobre moralidade são concisas, como a conversa em dois versos entre Jacó e seus filhos sobre a resposta adequada ao estupro de Diná. Os irmãos querem justiça, enquanto Jacó quer paz, e este argumento significativo é expresso de forma muito concisa, ao mesmo tempo que comunica complexidade:
Depois de tudo isso, Jacó disse a Simeão e a Levi: “Vocês arruinaram minha vida! Serei odiado por todos os povos desta terra, pelos cananeus e ferezeus. Somos tão poucos que eles se unirão e nos esmagarão. Eles me atacarão, e toda a minha família será exterminada!”. Mas eles responderam: “Por acaso deveríamos permitir que nossa irmã fosse tratada como prostituta?”. (Gênesis 34:30,31 – NVT)
Além disso, as histórias da Bíblia empregam técnicas literárias sofisticadas para apresentar idéias profundas. Um método é o contraste de tipos de personagens. Por exemplo, Caim representa fazendeiros, enquanto Abel, pastores. Caim é também o primeiro construtor de cidades e assassino. No mundo antigo, a riqueza era acumulada por meio da agricultura por meio de grandes projetos de irrigação. Isso exigia transformar “as populações [em] escravos por períodos de semanas ou meses, quando projetos importantes estavam em andamento”. À medida que mais terra se tornava arável, mais riqueza era acumulada. A lição crítica é que, aparentemente, a organização de recursos e autoridade sobre as pessoas produz os maiores benefícios.
Essa riqueza foi usada para construir cidades e edifícios magníficos, como pirâmides e zigurates. Os mesmos princípios de organização e autoridade foram empregados. Assim como o povo foi escravizado para construir irrigação essencial, eles construíram cidades e torres. Garantir a disciplina exigia uma grande burocracia, enquanto um grande exército era necessário para proteger tudo o que eles haviam construído. Não surpreendentemente, a imensa riqueza do rei em contraste com a pobreza de seus súditos o transformou em uma figura divina, construída sobre o trabalho árduo de outros e comandando as ações de outros. Dada a inclinação do fazendeiro para a desumanização, também não é surpreendente que o fazendeiro seja o primeiro assassino da Bíblia, e cidades, como Sodoma, são lugares de crueldade humana.
Em contraste, Abel representa o pastor. Invés de seguir seu pai e seu irmão mais velho no mundo da agricultura, Abel usa seu espírito empreendedor para tentar uma nova profissão. Ainda mais notável, Deus ordena que Adão seja um fazendeiro, mas Abel usa o silêncio de Deus sobre outras profissões para tentar pastorear. No final, Deus aprova e comunica seu desejo de independência humana e inovação.
Enquanto o fazendeiro melhora sua sorte por meio da organização e autoridade, o pastor, cético em relação à hierarquia, emprega criatividade e independência para melhorar sua vida.
A Bíblia, no entanto, não ignora os desafios do pastor, especialmente a vulnerabilidade de um estilo de vida nômade. Quando a fome chega, como costuma acontecer, são as civilizações agrícolas que podem sustentar a vida. Da mesma forma, o movimento constante do pastor o impede de formar laços comunitários maiores. Como Jacó ao se aproximar de Esaú, o pastor carece da proteção consistente necessária para repelir exércitos invasores.
Pastores, como Abraão, Jacó e Moisés, são os primeiros heróis da Bíblia, mas é o personagem de Davi que pode pegar as virtudes do pastor e trazê-las para a cidade ao criar a política nacional.
Por meio dessas tipologias, a Bíblia comunica as virtudes e desvantagens de diferentes abordagens da vida. Endossa os benefícios e alerta para os excessos. Desta forma, reconhece que a vida é mais complicada do que os tipos idealizados.
Um uso semelhante de tipologia complexa e matizada é a descrição de tipos de liderança. Estes são inicialmente incorporados pelos filhos de Jacó. Rúben é protetor e sentimental, Simeão usa a violência, Levi busca apaixonadamente a justiça e a pureza, Judá tem a habilidade de refletir e corrigir o curso para atingir o objetivo maior, enquanto José pode “manipular o poder a serviço de algum fim”. Esses tipos se repetem na história de Israel. O rei Davi segue o modelo de Judá e, embora tenha sucesso em última instância, está atolado em inconsistência e fracasso pessoal. Seu filho e sucessor Salomão age nos moldes de José e sofre o mesmo destino; o sucesso inicial na organização e construção perde de vista a visão mais ampla e se mostra insustentável.
Enquanto isso, o antecessor de Davi, Saul, é um líder do tipo Rúben que falha em liderar e inspirar. O personagem Levi é removido do poder político para trabalhar no Templo. Em momentos críticos, como no rescaldo do Bezerro de Ouro e com Finéias, o levita dá um passo à frente para proteger a aliança. Os Simeões são mais usados com moderação e no papel certo, como o general de David Yoav ben-Teruya. Como o juiz Jefté, ele pode alcançar a salvação, mas sua veia violenta também surgirá em formas de destruição, como a guerra civil de Jefté e o assassinato de competidores em potencial por Yoav.
REPETIÇÃO DE EVENTOS
Uma segunda metodologia para ensinar filosofia bíblica é construir sobre histórias anteriores por meio da repetição de eventos. A construção de um monumento de ouro com brincos por Gideão após sua vitória milagrosa repete o pecado do Bezerro de Ouro, construído com brincos após o Êxodo milagroso e a revelação no Sinai. Pode-se imaginar que um povo recém-liberto deseja liberdade, mas Hazony aponta que “isso é uma ilusão. A verdadeira liberdade – na qual um homem fica por conta própria, responsável por suas próprias ações, com nada além do céu aberto entre ele e Deus – é, em tais casos, experimentada como algo aterrorizante e até terrível”. Em vez disso, as pessoas anseiam por “alguém acima delas novamente”. Essas repetições refletem algo verdadeiro sobre a natureza humana.
Histórias recorrentes semelhantes são: as histórias de Sodoma (Gênesis 19) e da Concubina em Gibeá (Juízes 19), em que a exploração sexual de um estranho sinaliza completa corrupção social; e os perigos de aceitar muita hospitalidade, conforme evidenciado pela subsequente escravização de Jacó e da nação de Israel.
O Nacionalismo de Yoram Hazony
Nos últimos anos, Hazony tornou-se conhecido por seu livro A Virtude do Nacionalismo. Ao contrário de outras formas de nacionalismo, esta visão nacionalista particular origina-se diretamente da Bíblia. Nações independentes em vez de uma ordem global imperialista é a visão clara da Bíblia Hebraica. Hazony cita vários textos bíblicos para esse efeito. A Torre de Babel é uma tentativa de impor o domínio imperial, que Deus rejeita ao reintroduzir nações e diferenças.
Deus deu a Abraão apenas um pedaço de terra, não o mundo inteiro. A nação de Israel herda fronteiras detalhadas, e ela até é proibida de atacar outras nações. Até mesmo as visões messiânicas de Isaías e Zacarias insistem na existência de outras nações. Israel nunca teve ambições imperialistas. Mesmo em seu ideal, a ordem global é um tipo de ordem nacionalista que promove a diferença humana. Aqui também, a Bíblia tem ideias importantes sobre a vida humana ideal na Terra.
Ver a Bíblia Hebraica como um livro de razão nos leva a duas conclusões importantes. Em primeiro lugar, serve como uma verificação e um guia para a ética. A razão humana tem uma longa história de erros, e a Bíblia Hebraica evita esses erros. Em segundo lugar, quando a revelação é vista em consonância com a razão, ela nos dá uma ideia teológica profunda. O Deus da criação e revelação está totalmente investido em guiar os humanos para que vivam da melhor maneira e maximizando o potencial humano.
Rabino Rafi Eis é o Diretor Executivo do Instituto Herzl. Ele dirigiu um programa de semicha (ordenação rabínica) na Yeshivat (escola judaica) Har Etzion, foi um Ra’m em Midreshet Lindenbaum e, antes de sua Aliyah (migração para Israel), foi Diretor de Escola em uma escola judaica.
Ele recebeu semicha do Seminário Teológico Rabino Isaac Elchanan da Universidade de Yeshiva (RIETS), possui um M.S. em Educação Judaica pela Escola Azrieli de Educação Judaica da Universidade Yeshiva, e um B.A. de YU em Literatura Inglesa. Ele estudou na Yeshivat Har Etzion durante 1998–2000.